*** Este post é fruto de reflexões das aulas da disciplina Literatura e mercado editorial, oferecida no segundo semestre de 2020 pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFSCar.
Traduzir alguma coisa sempre é um desafio, seja porque a língua de chegada não possui termos que correspondam ao sentido dos termos usados no original ou por qualquer outra das inúmeras questões que aparecem ao longo do processo de tradução.
Maingueneau (2006, p. 182) diz que “o escritor não enfrenta a língua, mas uma interação entre línguas e usos, aquilo que denominamos interlíngua. Vamos entender por isso as relações que entretêm, numa dada conjuntura, as variedades da mesma língua, mas também entre essa língua e as outras, passadas ou contemporâneas. É a partir do jogo dessa heteroglossia profunda, dessa forma de ‘dialogismo’ (Bakhtin), que se pode instituir uma obra”. O mesmo acontece nas traduções – e nas traduções feitas pelo fandom, ou melhor, por contas no fandom –, a pessoa encarregada de traduzir um texto terá que não só traduzir as palavras, mas as interações e usos que esse texto evoca.
Neste ano alguns integrantes do EXO se juntaram ao Bubble, um serviço pago do Lysn (aplicativo que também é o local da comunidade oficial do EXO-L) em que o artista envia mensagens, vídeos, áudios e fotos diretamente para o celular do assinante, e as fanbases de diversos países passaram a também traduzir as mensagens enviadas – geralmente já há a tradução de outros conteúdos. Como essas mensagens são escritas em coreano, que possui palavras e formas de tratamento bastante específicos, diferente do inglês e português, ainda que haja tradução mecânica para inglês e outros idiomas diretamente no aplicativo (conforme mostrado na segunda imagem no topo deste texto), os tradutores-fãs precisam entender não só a ~dinâmica~ do coreano, mas descobrir como traduzir no texto em português (ou inglês) os detalhes que apenas certas partículas ou certas formas de escrita em coreano passam e não existem no idioma de chegada.
Tomemos como exemplo a sequência de mensagens apresentada nas três imagens usadas neste texto: a tradução automática da primeira mensagem é “The album is really pretty”, sua tradução feita pela fanbase INTL KAI é “The album is really pretty right, I put a lot of thought into it! (said cutely)” e sua tradução feita pela fanbse KAI BRASIL é “O álbum é muito bonito, certo? Eu prestei muita atenção nisso!”. Neste caso e nas demais mensagens da colagem desta postagem, a fanbase INTL, por não ter em inglês um termo modificado da forma que o idol usou em sua mensagem, precisa indicar entre parênteses que a frase não é simplesmente aquilo que está escrito, mas que há um tom “fofo” no texto – o mesmo acontece na fanbase brasileira, que neste caso, ao contrário do que faz normalmente, não incluiu o “escrito fofinho” no final (para ver um exemplo disso, clique aqui). Aqui podemos presenciar o movimento de transformação entre linguagens, tradições e culturas que Ribeiro indica estar envolvido na tradução:
“O ato tradutório consiste no movimento de transformação entre linguagens, tradições, culturas, tempo e espaço. É o trânsito entre escrever e transcrever, de ir além do que está registrado, de recuperar a história inserida entre as letras e sons que revelam um pensamento.
É a ação de transcriar discursos que transpassem os limites do concreto para atingir a imaginação, dentro dos parâmetros da similaridade. É percorrer as vias da analogia que produzem articulações entre a causa e o efeito.
Nesta altura, a tradução já se converteu numa transposição de caracteres que se caracterizam pela singularidade e contiguidade. Processo de concretização do que é fluido, mas preso por convenções elaboradas pelo pensamento humano.” (Ribeiro, 2020, p. 126)
Quando a fanbase indica o “said cutely” ou “escrito fofinho”, inscreve as mensagens na imagem que o idol tem no fandom – não vou entrar nisso aqui, mas isso daria uma boa conversa sobre ethos –, mas também transcreve variações da escrita em coreano que outros idiomas não conseguem atingir.
Imagem deste texto:
INTL KAI @INTLKAI - a conta foi suspensa depois de repostar um vídeo de uma plataforma paga em 26 de novembro.
@Lysn e [eu mesma @vickydoretto] (Lysn plmdds não derruba minha conta!)
Textos deste texto:
Maingueneau, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.
Ribeiro, Josimar Gonçalvez. Tradução. In: Ribeiro, Ana Elisa; Cabral, Cléber Araújo (Org.). Tarefas da Edição. Belo Horizonte: Impressões de Minas; LED, 2020. Disponível aqui.
escrito em 27 de novembro de 2020.
postado em 12 de dezembro de 2020 (porque eu esqueci de postar antes).
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