“Eu sou muito dorameira.” Mas nunca assistiu um dorama (drama japonês).
Acho que em algum momento da vida, toda pessoa que se diz fã de produções audiovisuais asiáticas provavelmente já chamou de “dorama” produções de diversos países de forma indiscriminada — principalmente quem começa realmente nos "doramas", parece que é meio automático chamar de dorama um "k-drama" —, mas a simplificação de chamar tudo por uma palavra só apaga as características distintivas dessas produções e colocar tudo no mesmo balaio é injusto com as milhares de pessoas que trabalham nas indústrias criativas, das que estudam os contextos históricos de cada país e ainda é simplesmente preconceituoso — é como chamar todos os descendentes de asiáticos de "japa".
O número crescente de pessoas chamando "K-drama" de "dorama" levou o Centro Cultural Coreano a divulgar um aviso em 20222 sobre isso e a ressaltar a necessidade de utilizar a expressão correta, "drama": "Ao escrever artigos e/ou conteúdos para blogs e sites sobre os dramas coreanos, não se esqueçam de chamá-las pelo nome correto". E pesquisadores de temas coreanos explicam repetidamente porque devemos chamar K-dramas de "K-dramas" e não "doramas". Mas a adesão da comunidade "dorameira"... ela parece ínfima.
Dito isto, na última semana, a Academia Brasileira de Letras apresentou "dorama" como a nova palavra do dicionádio do português brasileiro e isso seria uma notícia ótima se a Academia não tivesse colocado como uma mesma coisa todas as produções audivisuais de ficção do leste e sudeste da Ásia. Ora, as produções do leste e sudeste asiático não são a mesma coisa. Elas têm características diferentes, estilos narrativos diferentes, formas de produção e filmagem diferentes.... línguas diferentes. Nós não chamamos as dizis (novelas turcas) de novelas mexicanas, nem chamamos as séries inglesas de espanholas. Num manifesto contra o orientalismo publicado dias depois da divulgação do novo verbete da ABL, Augusto Kwon, presidente da Associação Brasileira dos Coreanos, pontuou que “em nenhum outro país do mundo as séries asiáticas são generalizadas. Aliás, não existem para as séries da Europa, por exemplo, o termo 'Eurodramas'”.
Eu sou professora de português e sempre costumo conversar com meus alunos estrangeiros sobre a mania que temos de “simplificar” as coisas — vamos usar “ce” no lugar de “você”, transformar “trabalho remoto” em “home office”, usar as palavras no infinitivo ao invés de conjugar, usar o plural em apenas uma das palavras nas frases (“os menino”, “fechar as porta”, “responder as pergunta”) — mas há certas simplificações que apenas reforçam preconceitos e reafirmam posições de poder, neste caso imperialista (não se pode esquecer da história recente da Coreia, por exemplo).
A ABL tem a força da consagração de termos usados no cotidiano, se “dorama” é ampliamento usado, por que não incluir “dorama”, “k-drama”, “dizi”, “c-drama”, “p-drama” entre outros? As palavras ganham vida própria, é claro, mas reforçar um contexto de uso que gera apagamento de culturas e funcionamentos distintos não é uma escolha questionável? Como órgão importante para a língua portuguesa brasileira e para a cultura do país, a ABL respalda, reforça, confirma um tipo de uso preconceituoso, orientalista. Se apoiar no fato de “é a maneira como a comunidade linguística (neste caso, a brasileira) faz uso de uma palavra que determinará a redação do verbete no dicionário, não o contrário”, como explicou Ricardo Cavaliere, membro da comissão de lexicografia da ABL, não retira a responsabilidade da Academia como órgão legitimador.
Se usamos o K- (designação distintiva) para tratar dos produtos coreanos (ou K-content), como K-pop, K-beauty, K-food, K-lit, qual o problema de usar K-drama? Apagar a diversidade cultural não é aecitável.
*amanhã deve sair uma nota da Curadoria de Estudos Coreanos da qual sou co-curadora, atualizarei este texto com o link em breve.
Referências
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. A Nova Palavra é “dorama”. Instagram, 23 out. 2023. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cyv7u0Jh5lq.
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Dorama. 2023. Disponível em: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/dorama.
CENTRO Cultural Coreano. [Aviso sobre o uso do termo correto para novelas coreanas]. Avisos, 14 abr. 2022. Disponível em: https://brazil.korean-culture.org/pt/436/board/180/read/114892
QUEIROZ, Julia. Pesquisadores coreanos assinam manifesto contra definição da ABL de 'dorama'; academia se defende. Entre Telas, Terra, 27 out. 2023. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/series/pesquisadores-coreanos-assinam-manifesto-contra-definicao-da-abl-de-dorama-academia-se-defende,360d3f7d05df847afbba5b21e4f49709aq4ql4o3.html.
MANIFESTO contra o orientalismo da Associação Brasileira dos Coreanos. Metagaláxia, 27 out. 2023. Disponível em: https://metagalaxia.com.br/cultura/manifesto-contra-o-orientalismo-da-associacao-brasileira-dos-coreanos/.
MAZUR, Daniela. A Indústria Televisiva Sul-Coreana no Contexto Global. Ação Midiática – Estudos em Comunicação Sociedade e Cultura, n. 22, p. 172- 191, 2021. DOI:10.5380/2238-0701.2021n22.09
OXFORD ENGLISH DICTIONARY. K-drama. Disponível em: https://www.oed.com/search/dictionary/?scope=Entries&q=k-drama&tl=true.
RIBEIRO, Pedro Henrique. Associação Brasileira dos Coreanos critica ABL por definição do termo dorama. Omelete, 27 out. 2023. Disponível em: https://www.omelete.com.br/series-tv/dorama-abl-polemica.
SALGADO, Luciana Salazar; DORETTO, Vitória Ferreira. K-Lit e espaço literário internacional: a circulação da literatura sul-coreana através do Literature Translation Institute of Korea e da Korean Literature Now. VINCO Revista de Estudos de Edição, v. 2, n. 2, 2022. Disponível em: https://periodicos.cefetmg.br/index.php/VINCO/article/view/1077
SHIM, Bo-Seon. A “K” to bridge Korea and the world: the state-led formulation of K-lit and its contradictions. International Journal of Asian Studies, p. 1–20, 2021. doi:10.1017/S1479591421000206
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